Do Conde Loppeux de la Villanueva
Século V. O império romano está em ruínas. O caos administrativo, militar e político do império é sentido por toda sociedade européia. Os bárbaros invadem as fronteiras imperiais e as cidades se esvaziam, já que são vulneráveis aos saques, e a anarquia toma conta do continente. Os únicos resquícios do antigo império sobrevivem em Bizâncio e no legado da Igreja Católica. Os antigos poderes administrativos de Roma recaem, no ocidente, na figura dos bispados, que salvam a cidade antiga do marasmo. Por outro lado, a Igreja, na expectativa dos novos habitantes dos territórios
imperiais, vê na figura dos bárbaros, a conquista de novas almas para a Cristandade.
O pragmatismo da Igreja é sentido em todo o caos: famílias romanas ligadas à instituição começam a forjar uma nova realidade social, a partir do caos. Todavia, a audácia da Igreja Romana seria recriar todo um império dentro dos ideais da sociedade cristã total. Eis que surgem os novos evangelistas, monges pregadores, vindos da Itália e até da Irlanda recém-convertida, que mostram as Boas Novas do Evangelho aos bárbaros e os convertem ao cristianismo. São construídos vários mosteiros na Europa, como sinônimo de resguardo cultural e religioso.
A idéia do monasticismo europeu não é moderna. Ela veio do Oriente, em particular, do Egito, e em algumas outras regiões da Palestina e da Grécia. Há fortes raízes judaicas na contemplação monástica, na figura dos essênios, seita do judaísmo isolada nos grotões das montanhas de Israel, no século I, A.D. No Egito cristianizado, na cidade de Alexandria, são conhecidas as manifestações monásticas e penitenciais , por vezes severas e exageradas, de eremitas e ascetas que se isolavam no deserto, em meditação.
No século VI, um grande monge chamado Bento de Núrsia, conhecido posteriormente como São Bento, soube organizar a situação dos mosteiros e da vida monástica. Ele criou as primeiras regras monásticas da Igreja, evitando os excessos na manifestação da devoção religiosa, ao mesmo tempo em que conciliava uma disciplina nos estudos e nas orações. Ficou conhecida como Regula Benedicti e foi adotada por uma boa parte dos monges medievais. De fato, as regras de Bento acabaram por fundamentar a Ordem dos Beneditinos.
Mas os mosteiros não foram apenas centros de contemplação religiosa. Em específico, as ordens monásticas preservaram uma boa parte da cultural clássica e medieval. Os beneditinos eram homens dedicados à cultura e a leitura e muitos eram obcecados por textos clássicos, relíquias do mundo antigo. Chamados de monges copistas, eles preservaram este legado, através de cópias de manuscritos, que eram reescritos de épocas e épocas, até chegarem às gerações posteriores. Dizem que estes homens escreviam sem parar, e passaram horas e mais horas, até completar o conteúdo das obras. Os copistas nutriam a crença de que quanto mais cópias fossem feitas, mais chances haviam das obras serem salvas. E essa lógica deu certo porque salvou muitas obras latinas e gregas do desaparecimento.
Isso já seria muito, se não fosse por outro detalhe: os mosteiros revolucionaram a economia e os costumes medievais. Os mosteiros foram a primeira empresa moderna, no amplo sentido da palavra, a ponto de renegar o escravismo e a servidão. Nos séculos VI a IX, as técnicas de produção agrícola, a capacidade administrativa e a aplicação de métodos contábeis das terras dos monges medievais eram superiores a qualquer empreitada agrícola feudal leiga. Ademais, a Igreja foi uma das pouquíssimas instituições medievais que usavam largamente o trabalho livre e assalariado em suas posses, desestimulando a escravidão. Muitas das terras da Igreja eram arrendadas aos camponeses, que poderiam produzir excedentes, ao mesmo tempo em que eles pagavam uma parte aos mosteiros. Ou mesmo os monges faziam o serviço voluntariamente, vivendo do usufruto de suas rendas, plantadas aos solos doados pela comunidade.
Ao contrário do mito alardeado sobre o poder da Igreja, grande parte das terras doadas para os monges eram insalubres e impróprias ao cultivo. No entanto, eles desenvolveram tecnologias de plantio de alimentos em pântanos e lugares íngremes, gerando grande produção de alimentos e enriquecendo os mosteiros. Uma parte desse excedente era consumido ou vendido, e outra parte era distribuído aos pobres.
A tradição da caridade da Igreja não era da Idade Média. Já existia desde a época do judaísmo da diáspora e foi incorporado às comunidades da Igreja Primitiva, até se tornarem parte da Igreja Católica e do mundo medieval. Na verdade, a Igreja foi a principal instituição de caridade em uma boa parte da história européia.
Se os bispados são meios eficientes de administração pública das cidades, que agora estão decadentes, a conversão dos pagãos ao cristianismo lhes dá uma legitimidade moral para o governo. Pequenos reinos nascem na Europa. Na mais completa tradição judaica adaptada ao cristianismo, os reis, cavaleiros e nobres são ungidos pela Igreja. Daí surge a nobreza cristã medieval e seus deveres políticos para com sua casta e seus direitos de conquista. O bispado romano, que perdeu seu status político, com a queda do Império no Ocidente e, sujeito às pressões do Império de Constantinopla, assim, teve sua possibilidade de reivindicar mais uma vez, autonomia e soberania espiritual.
Teoricamente, a Igreja Romana tinha hierarquização superior ao Império de Bizâncio, por herdar o legado da antiga capital imperial, embora as influências políticas do imperador neutralizassem essa influência. Vários papas gregos foram eleitos sob a indicação do imperador e a influência grega era sentida na Itália, apesar dos ressentimentos latinos. Se o poder espiritual da Igreja estava em Roma, sua força política estava em Bizâncio. O imperador, incorporando a tese bíblica de Melquisedec, ou do sacerdote-rei, conflitava com os poderes da Igreja e do papa. No entanto, as relações entre o imperador e o papa eram precaríssimas. Os papas latinos pagavam tributos a Bizâncio, desde o século V e então começaram a conspirar contra o poder do imperador. Durante o século VI, guerras bizantinas assolaram a Itália, e a independência da Igreja Romana foi salva pelos povos bárbaros conversos, em particular, os lombardos, que lutaram a favor do papa, contra o imperador Justiniano. Quase dois séculos depois, a Igreja Romana busca a proteção do reino franco, ao coroar Carlos Magno como imperador do Sacro Romano do Ocidente, chocando os bizantinos, que se consideravam reais herdeiros da tradição romana. De fato, os cristãos de Bizâncio se autodenominavam Romioi, ou gregos com cidadania romana. E qualquer menção que os distinguissem dos romanos, soaria como ofensa.
Os católicos romanos exigiam a sujeição da Igreja e do Império Grego à autoridade do papa. Os conflitos entre Roma e Bizâncio e entre a Igreja Romana e sua filial grega, tanto em aspectos litúrgicos, teológicos e políticos, acabaram por causar a primeira ruptura da Cristandade na Europa, com o cisma de 1054, em que a Igreja Grega se desligou da Igreja Romana.
A Igreja Romana, de fato, conquistou sua supremacia política, com predomínio sobre a sociedade ocidental, quando coroou Carlos Magno, no Natal de 800. A idéia mesma de ungir um príncipe romano-germânico implicava a legitimidade do império, sob os auspícios e bênçãos de Roma. A tradição intelectual medieval acabou por desenvolver uma das teorias mais engenhosas da política: o fundamento do poder espiritual e do poder temporal, que coexistiam e se equilibravam mutuamente, com preponderância do papado. O poder espiritual era o elemento orientador da política leiga e as ações dos príncipes só teriam legitimidade política, dentro da idéia de seguir a moralidade e o pensamento cristão. A Igreja fazia o equilíbrio de poderes nos papas e reis da Europa. A fé religiosa era um elemento comum de uma sociedade criada nos ideais do cristianismo. Isso ordenou, ainda com certa fragilidade e eficiência, o equilíbrio político do mundo europeu medieval, dividido entre vários feudos, reinos e principados que lutavam entre si.
Dentro deste contexto, é aclamado em Roma, como papa, no ano de 590, Gregório I, ou São Gregório Magno. Nascido em 540, era filho de uma velha família aristocrática senatorial romana, e, antes de ser Sumo Pontífice, fazia votos de monge beneditino. Gregório, um homem rico, legou toda a herança de sua família na construção de novos mosteiros e distribuiu uma parte de seus bens aos pobres. Ele patrocinou as primeiras ações missionárias na Inglaterra, sob a liderança de Agostinho da Cantuária, que converteu o povo inglês ao cristianismo e se tornou, posteriormente, o primeiro bispo da Cantuária. O papa era um homem culto e de letras, e uma de suas obras mais famosas é a biografia de seu mentor espiritual, São Bento de Núrsia. Por outro lado, o nome de Gregório ficou associado a uma das maiores contribuições de seu papado: a música!
O Canto Gregoriano é uma dos monumentos mais significativos da música ocidental. Foi compilado por ordem do papa, no ano 600 e é uma coletânea de músicas advindas da mais genuína tradição cristã. É o repertorio musical mais antigo que se há notícia no ocidente. Sua influência é tão abissal, tão profunda na música religiosa, que é sentida em milênios de música sacra cristã até os dias de hoje. Os cantos medievais, renascentistas e barrocos posteriores, as liturgias, os cânones, os responsórios, as antífonas, são estruturas ligadas aos esquemas musicais do Canto Gregoriano. Seu plano musical está intrinsecamente ligada aos rituais da missa católica.
Na verdade, os cantos gregorianos são o liame entre a música da Idade Antiga e o mundo medieval. Neles, há traços da liturgia judaica, grega e latina nos cantos e nas letras. Há ainda uma síntese de uma velha tradição oral da música cristã do mundo antigo, compilada em suas melodias homofônicas, com os recitativos judaicos dos salmos, em grego e latim. Concomitante a isso, o cantochão é uma sólida tradição encontrada nas sinagogas e mesmo na antiguidade clássica pagã latina, que foram incorporadas ao catolicismo.
O canto gregoriano acompanha os ritos da liturgia católica. Tal estruturação é encontrada em variadas épocas da música ocidental, desde Josquin de Prèz, até Mozart. É o legado do grande papa Gregório.
Eis aqui uma exemplificação do assunto, que extraio de um site, o que seria redundante repetir por minhas palavras:
"O Próprio é usado para temas de variados assuntos relacionados à igreja:
As peças principais do Próprio são:
o intróito
o aleluia
o canto do ofertório
o canto da comunhão
O intróito. O intróito acompanha a procissão de entrada do celebrante e de seus ministros, procurando ajudar aos fiéis a entrar no mistério celebrado, dando o tema do dia ou da festa.
O gradual. O gradual é o canto das leituras. É um tipo de salmo com estribilho. A princípio, a assembléia respondia com uma fórmula singela ao canto do solista que cantava os versículos sucessivos do salmo, mas durante os séculos V e VI, ao enriquecer a ornamentação, o texto se abreviou.
O aleluia. "Louvai ao Senhor", é a tradução literal desta palavra hebraica. Na missa se cantava originalmente só no dia de Páscoa; e durante o Tempo de Páscoa. Logo se começou a cantar também nos domingos, celebrações semanais do mistério da Ressurreição. Finalmente, se estendeu o uso até aos dias de semana, fora o da quaresma.
O ofertório. Não se trata de um canto "funcional" senão de um acompanhamento das cerimônias, um tipo de oferenda musical suntuosa.
A comunhão. A função deste canto é acompanhar a procissão dos que vão comungar. O tema do canto da comunhão está quase sempre relacionado com o sacramento que se distribui nesse momento. Trata de sintetizar a liturgia da Palavra e a liturgia Eucarística.
Ao lado dos cantos do Próprio com textos que variam segundo as circunstâncias, a celebração da Missa comporta cantos com um texto fixo, independentemente do dia ou da festa.
O Kyrie. Kyrie eleison (Senhor, tende piedade) é uma fórmula grega com o qual os fiéis clamam a seu Senhor implorando sua misericórdia. Este canto, hoje em dia entoado no começo da Missa como rito penitencial, prepara os fiéis para a celebração do mistério eucarístico.
O Glória. Hino de origem oriental, o Glória remonta ao século II. Na liturgia romana, foi no início o canto de entrada da Missa de Natal, posto que convém perfeitamente pela inspiração original da base do texto. Progressivamente foi utilizado nas grandes festas do ano e nos domingos.
O Sanctus. No início da súplica eucarística, o canto do Sanctus introduz ao grande recitativo do Prefacio. Chama-se "o hino dos Serafins" que viu no templo de Jerusalém o profeta Isaías. Convida a Igreja da terra a unir-se a liturgia do céu.
O Agnus Dei. É o canto que acompanha a fração do Pão que acaba de ser consagrado, cuja fração acontece alguns momentos antes da distribuição da comunhão aos fiéis. Assim os assistentes se aproveitam do momento que há entre a consagração e a comunhão "para saudar com homenagem e súplica humilde a Ele que se fez presente para nós sob a aparência do pão".
O OFICIO DIVINO
Esta grande súplica cotidiana da Igreja consagra o conjunto do tempo humano para o louvor divino. Sete vezes ao dia e uma vez durante a noite, a comunidade cristã se une para celebrar esta liturgia que no fundo está constituída essencialmente pelo canto dos salmos.
As antífonas. O canto do salmo está quase sempre envolto em uma peça breve chamado "antífona". Que, todavia se apresenta por seu valor próprio, introduz e conclui o canto.
Os responsórios. Os responsórios são os cantos que respondem as leituras da Bíblia e dos padres durante o ofício da noite. É antes de tudo um canto de meditação, um comentário contemplativo do texto sagrado.
Os hinos. As peças mais populares do oficio são sem dúvida, os hinos. Sua importância na liturgia ocidental foi introduzida pelo Concílio Vaticano II. O hino dá o tom e ajuda os fiéis a entrar no tempo litúrgico ou no mistério celebrado. Considerado como uma composição sensível e melodiosa."
(Canto Gregoriano - São Gregório Magno - Século VI A. D.)
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