domingo, 8 de abril de 2007

São Beda, o Venerável

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Beda escreveu em latim, mas a história da literatura anglo-saxã não pode prescindir de seu nome. Beda e Alfredo o Grande foram os varões mais ilustres que produziu a Inglaterra germânica. Sua fama espraiou-se pela Europa; ao quarto céu, Dante viu no Sol, mais luminosos que este, a doces espíritos ardentes que formavam uma coroa no ar; um destes era Beda o Historiador (Paraíso, X)

Beda (673‑735) representa, segundo Maurice de Wulf, a cultura céltica dos monastérios irlandeses do século VII. Com efeito, seus mestres foram os monges irlandeses do monastério de Jarrow.

O qualificativo de venerável conferiu a Beda, em certos livros medievais, uma falsa longevidade; em verdade, morreu aos sessenta e três anos. Diz-se que venerável era um título dado a seu tempo a todos os sacerdotes. Uma lenda conta que um monge quis escrever o epitáfio de Beda, e não conseguindo terminar o primeiro verso:

Hac sunt in fossa Bedae... ossa,

decidiu descansar. Ao despertar, viu que uma mão desconhecida – sem dúvida, a de um anjo – havia intercalado durante a noite a palavra venerabilis.

Ele nasceu nas terras do monastério de São Paulo, em Jarrow, que está no norte da Inglaterra. Aos cinqüenta e nove anos escreveu: “Toda a a minha vida passei neste monastério, consagrado ao estudo da Bíblia e, entre a observação da disciplina monástica e a tarefa cotidiana de cantar durante os ofícios, meu deleite fora aprender, ensinar e escrever.”

Deixou um tratado de métrica, uma história natural baseada na obra de Plínio, uma cronologia universal da era cristã, um martirológio, biografias dos abades de Jarroe e a famosa História Eclesiástica da Nação Inglesa (Historia ecclesiastica gentis Anglorum), em cinco livros. Todos em latim, assim como copiosos comentários e interpretações da Escritura segundo o método alegórico. Escreveu hinos e epigrmas latinos, mais um livro de ortografia. Versificou também em anglo-saxão e deixou alguns versos, que murmurou em seu leito de morte, sobre a vaidade dos conhecimentos humanos. Soube do grego e do hebráico “tudo o que lhe puderam ensinar as obras de Jerônimo”. Um amigo seu escreveu que era doctus in nostris carminibus, versado em poesia vernácula. Na sua História Eclasiástica, narra a conversão de Edwin, o sonho de Caedmon, e recolhe duas visões ultraterrenas.

A primeira é a visão de Fursa, monge irlandês que havia convertido a muitos saxões. Fursa viu o inferno: uma cova cheia de fogo. O fogo não o queima; um anjo lhe explica: “Não te queimara o fogo que não ateaste.” Os demônios o acusam de haver roubado a roupa de um pescador que agonizava. No purgatório, arrojam contra ele uma alma em chamas. Esta lhe queima o rosto e um ombro. O anjo lhe diz: “Agora te queima o fogo que ateaste. Na terra tomaste a roupa desse pescador; agora, teu castigo te alcança.” Fursa, até o dia de sua morte, levou em seu rosto e no ombro os estigmas do fogo de sua visão.

A segunda visão é a de um homem de Nortumbria, chamado Drycthelm. Este morrera e ressusitara, e relatou (depois de dar todo seu dinheiro aos pobres) que um homem de rosto resplandecente o conduziu a um vale infinito e que à esquerda havia tempestades de fogo e, à direita, de granizo e de neve. “Ainda não estás no inferno”, disse-lhe o anjo. Depois, vê muitas bolas de fogo negro que sobem de um abismo e que caem. Depois, vê demônios que se riem porque arrastam ao fundo desse abismo as almas de um clérigo, de um leigo e de uma mulher. Depois, vê um muro de extensão infinita e de infinita altura, e mais além, uma grande pradaria florida com uma aglomeração de gente vestida de branco. “Ainda não estás no céu”, disse-lhe o anjo. Quando Drycthelm vai descendo pelo vale, atravessa uma região tão escura que só vê o traje do anjo que o precede. Beda, ao contar a cena, intercala um verso do livro VI da Eneida:

(Ibant obscuri) sola sub nocte per umbram

Um pequeno erro – Beda não escreve umbram, mas umbras – prova de que a citação foi feita de memória e, ainda, a familiaridade do historiador saxão com Virgílio. No texto há outras reminiscências virgilianas. Beda conta também a história de um homem a quem o anjo deu para ler um livro minúsculo e branco em que estavam registrados seus bons atos – que eram poucos – e o demônio um livro horrível e negro, “de tamanho descomunal e de peso quase insuportável”, em que estavam registrados seus crimes, além de seus maus pensamentos.

Citamos algumas curiosidades da História Eclesiástica, mas a impressão geral que o volume deixa é de serenidade e sensatez. A extravagância parece corresponder à época, não ao indivíduo.

“Quase todas as obras de Beda – escreveu Stopford Brooke – são epítomes instrutivas, de grande erudição, de escassa originalidade, mas repletos de claridade e mansidão.” Suas obras foram livros de texto da escola de York, a que concorreram estudantes da França, da Alemanha, da Irlanda e da Itália.

Beda, muito doente, estava traduzindo em anglo-saxão o Evangelho de São João. O amanuense lhe disse: “Falta um capítulo.” Beda ditou-lhe a tradução; logo, disse-lhe o amanuense: “Falta uma linha, mas estás muito cansado.” Beda ditou-lhe a linha; o amanusense disse: “Agora acabou-se.” “Sim, acabou-se”, disse Beda, e pouco depois morreu. É belo pensar que morreu traduzindo – quer dizer, cumprindo a menos vaidosa e a mais abnegada das tareas literárias – traduzindo do grego, do latim, para o saxão, que, com o tempo, viria a ser o grande idioma inglês.

De Jorge Luís Borges

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