quinta-feira, 19 de abril de 2007

Comentário ao Evangelho do Domingo de Ramos (Paixão)

DO TRATADO DE SANTO AGOSTINHO, BISPO, SOBRE O EVANGELHO DE SÃO JOÃO


Se o sangue de Cristo não se derramasse, o mundo não seria remido

Ainda não chegara a sua hora (Jo 7,30), não a hora em que seria obrigado a morrer, mas consentiria em morrer. Bem sabia quando deveria fazê-lo, pois conhecia todas as profecias a seu respeito, e esperava que se cumprissem todas as coisas preditas para antes de sua paixão, a fim de que, quando fossem realizadas, ela então tivesse início, segundo a ordem (por ele) estabelecida, não por fatalidade.
Escutai e constatai vós próprios. Entre as coisas profetizadas a seu respeito, está escrito: Deram-me fel como alimento e ofereceram-me vinagre em minha sede (Sl 68,22). Sabemos pelo Evangelho como isto se realizou. Primeiro, deram-lhe fel: tomou, provou, cuspiu; depois, pendente na cruz, para que se realizasse o que fora predito, exclamou: Tenho sede; tomaram então uma esponja embebida em vinagre, ataram-na a uma cana, e apresentaram-na ao que pendia na cruz. Ele tomou e disse: Tudo está consumado (cf. Jo 19,28-30). Que significa: Tudo está consumado? Todas as coisas que foram profetizadas antes da minha paixão se realizaram; então, o que ainda faço na terra? Finalmente, depois de ter dito, tudo está consumado, ele, inclinando a cabeça, entregou o espírito (Jo 19,30).
Porventura os ladrões, crucificados ao seu lado, morreram quando quiseram? Estavam presos pelos laços da carne, porque não dominavam sua fraqueza. O Senhor, pelo contrário, quando quis, fez-se carne nas entranhas da Virgem; quando quis, veio ao encontro dos homens; enquanto quis, viveu no meio deles; quando quis, separou-se da carne. Tudo isto por poder e não por necessidade. Esperava, pois, esta hora, não fatal, mas oportuna e querida, para que se realizasse primeiro tudo que devia realizar-se antes de sua paixão. Pois, como podia estar sujeito ao destino, aquele que dissera: Tenho poder de dar a minha vida, e tenho poder de retomá-la; ninguém me pode retirá-la, mas eu a dou por mim mesmo, como tenho o poder de reassumi-la (cf. Jo 10,17-18)? Mostrou tal poder quando os judeus o procuravam para prendê-lo: A quem procurais?, perguntou. E eles: Jesus. Respondeu ele: Sou eu. Ouvida esta voz, recuaram e cairam por terra (Jo 18,4-6).
Alguém dirá: se nele havia tal poder, por que, quando os judeus o insultavam pendente na cruz e diziam: Se és o Filho de Deus, desce da cruz (Mt 27,40), não desceu para mostrar o que podia? Adiava a manifestação do seu poder quem ensinava a paciência. Se descesse movido pelas palavras dos inimigos, julgariam que fora vencido pela dor dos insultos. De fato, não desceu, mas permaneceu crucificado, para sair da cruz quando quisesse.
Que coisa grande descer da cruz, para quem pôde ressurgir do sepulcro! Compreendamos, pois, recebendo este ensinamento, o poder de nosso Senhor Jesus Cristo então oculto, mas que se manifestará no juizo futuro, do qual foi dito: Deus virá manifestamente, o nosso Deus, e não se calará (cf. Sl 49,3 Vulg.). Que quer dizer não se calará? Que primeiramente se calou. Quando se calou? Quando foi julgado, e realizou então o que fora predito pelo profeta: Como ovelha conduzida ao matadouro, ou cordeiro mudo ante o tosquiador, ele também não abriu a boca (Is 53,7). Se não quisesse sofrer, não sofreria; se não tivesse sofrido, seu sangue não teria sido derramado; se seu sangue não tivesse sido derramado, o mundo não seria redimido. Demos graças, pois, ao poder de sua divindade e à misericórdia de sua fraqueza.

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