sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Atenágoras de Atenas: o Homem é Corpo e Alma

Caríssimos: Peço que leiam este site, do autor do texto que aqui reproduzo. Sávio Laet é um dos maiores conhecedores de Patrística do Brasil.
Autor: Sávio Laet de Barros Campos.
Licenciado e Bacharel em Filosofia Pela
Universidade Federal de Mato Grosso.

1.1) A “Platonização” do Cristianismo

Atenágoras escreve a Petição em Favor dos Cristãos ao imperador e filósofo estóico, Marco Aurélio. Não tem nem a simpatia de Justino, nem a antipatia rabugenta de Taciano, para com a filosofia grega. Limita-se a assinalar que, em alguns pontos, os filósofos concordam com a Revelação cristã. Por exemplo, não é possível acusar os cristãos de ateísmo, por causa do seu monoteísmo, visto que Platão foi monoteísta e nem por isso era considerado ateu. Enquanto alguns autores cristãos tentam cristianizar Platão, Atenágoras busca “platonizar” o cristianismo; não que tivesse interesse em Platão, mas paraele seria interessante ter um precursor a seu favor, como o filósofo grego, diante do imperador filósofo:
(...) O mesmo no que diz respeito a Platão. Se Atenágoras lhe concede ter entrevisto a verdade, inclusive a do Dogma da Trindade, é menos no interesse de Platão do que no do dogma, para o qual podia ser útil reivindicar tal precursor.

1.2) A Primeira Prova da Unicidade do Deus Cristão

Depois de aduzir argumentos de autoridade, Atenágoras tenta demonstrar racionalmente a existência de um só Deus. A argumentação é ingênua, mas merece destaque por ser a primeira tentativa de se demonstrar a unicidade do Deus cristão. Se no princípio existissem dois ou vários deuses,eles teriam que ocupar ou o mesmo lugar ou lugares diferentes. Não poderiam ocupar o mesmo lugar porque não seriam semelhantes; não seriam semelhantes porque só o que é gerado é semelhante e os deuses são incriados. Também não pode cada um deles estar em seu lugar. Suponhamos que um deles fosse o criador e exercesse a sua providência sobre todo o universo. Partindo deste pressuposto onde estaria o outro lugar ocupado por um outro deus? Se lidarmos com a hipótese de que ocuparia o seu lugar em outro mundo, esta hipótese não se sustentaria porque desta forma ele seria finito e teria poder finito porque não exerceria nenhum poder sobre o nosso mundo. Aliás, como pensar em outro mundo, sendo que todo o universo está sob a providência do Deus que o cria e conserva? Ora, um deus que não está em lugar nenhum e nem conserva coisa alguma não é. Para não sermos prolixos digamos logo que existe um só Deus, criador e governador do mundo:
Por fim, se nada faz, não tem providência, nem outro lugar onde esteja, existe, desde o princípio, um único e só: o Deus criador do mundo.

O argumento de Atenágoras deixa muito a desejar quanto ao rigor dialético. Ele parece – como chama a atenção Gilson - não conseguir conceber Deus senão ocupando um lugar no espaço:
A obstinação dialética da prova merecia uma base mais sólida. Atenágoras não parece capaz de pensar Deus sem relação com o espaço.

1.3) Dois Momentos do Discurso: em Defesa da Verdade e Sobre a Verdade

Atenágoras escreve Sobre a Ressurreição dos Mortos. Nesta empresa deve-se primeiro estabelecer que a ressurreição não é impossível. Se Deus pôde criar, poderá também recriar. Realmente Ele pode querer tal indústria, pois nada há de injusto nela.
A primeira coisa a se considerar nesta obra é a distinção, elaborada por Atenágoras, entre os possíveis discursos sobre a verdade. Tal distinção norteia toda a argumentação a favor da ressurreição. Existem dois discursos, segundo Atenágoras, acerca da verdade: um que preza em defendê-la, outro que discorre sobre ela. Os raciocínios a favor da verdade são para os que nela não crêem; os raciocínios sobre a verdade são para aqueles que estão abertos a acolhê-la. É preciso verificar, com discernimento, qual seja a ocasião propicia e - de acordo com tal consideração - é que se deve adotar o gênero de raciocínio mais conveniente para uma determinada ocasião. Se pensarmos na ordem natural, os raciocínios sobre a verdade devem ter a primazia, pois possuem maior força demonstrativa; ao contrário, se levarmos em conta a utilidade, deve-se antes
defender a verdade do que expô-la:
Com efeito, se se olha para a força demonstrativa e para a ordem natural, os raciocínios a respeito da verdade têm a primazia sobre os raciocínios em defesa da verdade; ao contrário, se olhamos, porém, a utilidade, os raciocínios em defesa da verdade são anteriores aos raciocínios a respeito da verdade.

1.4) As Duas Fases de Toda Apologia

No primeiro momento nosso filósofo mostrou que a ressurreição é possível; agora lhe caberá tarefa mais árdua, a saber, provar que ela de fato ocorrera. É preciso primeiro mostrar que a fé não é um absurdo e isto se faz refutando o erro; depois, num segundo momento, cabe ao apologeta justificar objetivamente as verdades da fé. De resto, toda a apologia deve conter estes dois momentos:
Este primeiro momento de toda a apologia é o que Atenágoras chama de “falar em favor da verdade”; o segundo momento, quesempre deve seguir o primeiro, consiste em falar “sobre a verdade”. No presente caso, já tendo sido mostrado que a ressurreição dos corpos por Deus é possível, este segundo momento consiste em mostrar que ela efetivamente ocorrerá.

Os Três Argumentos que Provam a Realidade da Ressurreição

1.4.1) O Primeiro Argumento: A Dignidade da Criatura Racional

Atenágoras demonstra que, de fato, a ressurreição ocorrerá por três argumentos principais, podemos dispensar o quarto. O primeiro parte do pressuposto que Deus, por ser sábio, não fez o homem em vão; tampouco fez Deus o homem para dele se utilizar, pois o sábio não precisa de nada; não se pode dizer que Deus tenha feito o homem para utilidade de qualquer outra criatura; outrossim, sendo o homem ser de razão, não poderá estar submetido a nenhuma outra criatura, seja ela maior ou menor que ele. É evidente, dado a eliminação de todas as possibilidades, que Deus fez o homem pelo próprio homem. Deus concedeu às criaturas racionais uma permanência para sempre a fim de que, dotadas de inteligência como são, pudessem mais e mais conhecer a Deus, contemplar a sua sabedoria, seguir a sua lei e a sua justiça. Com efeito, o que por outra coisa foi feito pode deixar de ser, desde que cesse aquilo pelo qual foi feito. Entretanto, aquilo que existe em virtude de si mesmo, não poderá deixar de ser. Deus não teria feito o homem, dotando-o de inteligência e da capacidade de conhecê-Lo, se realmente não quisesse que ele permanecesse.

Portanto, se o homem deve permanecer para sempre, haverá ressurreição, pois, se não houvesse, o homem não poderia permanecer para sempre. Daí que, da causa da criação do homem, podemos deduzir, com certeza, a sua permanência para sempre; da sua permanência para sempre podemos demonstrar que é evidente a sua ressurreição:
(...) a causa da criação nos garante a permanência para sempre e a permanência garante a ressurreição, pois sem ela não seria possível ao homem permanecer para sempre.

1.4.2) O Segundo Argumento: O Homem é Alma e Corpo

O segundo argumento é decisivo para a história da filosofia cristã. O argumento afirma que o homem não é a sua alma, mas composto de corpo e alma. Ora, se o homem é destinado à eternidade; se, por outro lado, ele não é somente a sua alma, mas um composto de corpo e alma então é necessário dizer que o corpo não pode perecer, senão que deve também ele permanecer e gozar do mesmo fim da alma. Logo, é necessário admitir a ressurreição, visto que o corpo se corrompe com a morte e a permanência somente da alma não equivaleria a permanência do homem enquanto tal:
A constituição dos próprios homens demonstra que a ressurreição dos corpos dos mortos e desfeitos necessariamente se seguirá; caso ela não houvesse, não seria possível que as partes se unissem naturalmente umas com as outras, nem a natureza se comporia dos mesmos homens.

Gilson observa que foi exatamente o dogma da ressurreição que fez com que Atenágoras percebesse e denunciasse o perigo do platonismo. De fato, o platonismo afirma ser o homem a sua alma. Parece que, no argumento do nosso filósofo, já se pode vislumbrar, finalmente, o triunfo posterior do aristotelismo dentro do pensamento cristão:
Esse princípio levou Atenágoras a formular, em termos de um vigor e de uma nitidez insuperáveis, uma idéia de importância fundamental para todo filósofo cristão: o homem não é sua alma, mas composto de sua alma e de seu corpo. Ponderando-se bem, essa tese acarretava desde a origem a obrigação, de que os pensadores cristãos só tomarão consciência mais tarde, de não ceder à miragem do platonismo. (...) O dogma da ressurreição dos corpos era um convite instigante a incluir o corpo na definição do homem; por mais paradoxal que essa tese possa parecer à primeira vista, parece que esse dogma de fato tenha como que justificado de antemão o triunfo final do aristotelismo sobre o platonismo no pensamento dos filósofos cristãos.

1.4.3) O Terceiro Argumento: A Justiça de Deus

Aqueles que admitem Deus como criador do mundo devem admitir que Ele, por sua sabedoria, governa todo o universo e que, de sua providência, nada escapa. Ora, os atos humanos devem ser atribuídos ao homem e o homem é composto de alma e corpo. Por conseguinte é ao homem - alma e corpo - que são devidos os prêmios e os castigos conforme as suas ações forem boas ou más. Donde, nem a alma poderá receber sozinha o que fez junto com o corpo e nem o corpo poderá receberá sozinho o que não faria senão unido à alma.

Vemos, contudo, que nesta vida tal justiça não se realiza: destarte, muitos ateus e dissolutos vivem sem nenhum dano e chegam ao fim desta vida sem sofrer nenhum mal; por outro lado, existem aqueles que, embora vivendo conforme a virtude, sofrem nesta vida toda sorte de tormentos.
Após esta vida é certo que a justiça ocorre! No entanto, por estar a alma separada do corpo, tal não justiça ainda não é completa. Isto porque, separado da alma, o corpo se desfaz e não guarda a memória de seus atos.

Importa então afirmar, com o Apóstolo, que será preciso que o nosso corpo corruptível se revista de incorruptibilidade - mediante ressurreição - para que enfim receba o que lhe é devido por suas obras, sejam elas boas ou más:
Portanto, permanece apenas evidentemente o que diz o Apóstolo: é preciso que este corpo corruptível e disperso se revista de incorruptibilidade, para que, vivificados pela ressurreição, seus membros mortos e novamente unidos os que se haviam separado e até totalmente dissolvido, cada um receba justamente o que realizou por meio do seu corpo, bem ou mal.

1.5) A Distinção entre a Prova Racional e o Apelo à Fé

Percebamos que Atenágoras distingue a prova racional do apelo à fé. Com efeito, nenhum dos argumentos recorre à ressurreição de Cristo o que, ipso facto, já bastaria para atestar a veracidade da ressurreição a um cristão. Soube distinguir ainda a refutação do erro da exposição da verdade:
Portanto, Atenágoras teve o justo senso de certos dados fundamentais do problema que o pensamento cristão tinha de resolver. Distinção dos dois momentos de toda apologética: prova da credibilidade, pela refutação dos argumentos que querem estabelecer o absurdo da fé, e justificação racional direta das verdades assim apresentadas como possíveis; distinção entre a prova racional e o apelo à fé (é por isso que o vimos justificar a ressurreição dos corpos sem apelar para a ressurreição de Cristo, que é sua garantia para todo cristão) (...).

Nenhum comentário: