terça-feira, 29 de maio de 2007

As Heresias Trinitárias

Fonte

De Dom Estêvão Bettencourt

Tendo estudado a expansão do Cristianismo até o século VI, passamos a considerar a história das doutrinas da fé na antigüidade: capítulos 8-13. Um dos mais sérios problemas doutrinários que se puseram na Igreja antiga, foi o da conciliação da unidade de Deus (firmemente professada pelo Antigo Testamento) com a Trindade de Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo, tais como nos foram revelados pelo Novo Testamento). A inteligência dos cristãos se pôs à procura de uma fórmula satisfatória, que, após duras controvérsias, foi definida pelos Concílios de Nicéia I (325) e Constantinopla I (381). É a história dessa longa reflexão que vamos estudar

O monarquianismo

Nos séculos II/III alguns escritores cristãos julgavam que o Verbo (Lógos) ou o Filho de Deus só se tornara pessoa no tempo; em vista da criação do mundo, o Pai teria gerado ou emitido o Lógos, de modo a constituir a segunda Pessoa da SS. Trindade. Esta concepção negava a eternidade do Filho de Deus e o subordinava ao Pai. Todavia os defensores dessa teoria afirmavam a Divindade do Filho, de modo que não suscitavam grave polêmica na sua época.

Podemos dizer que a primeira tentativa sistemática de conciliar unidade e pluralidade em Deus professava a unidade com detrimento da pluralidade. Chamou-se, por isto, monarquianismo, expressão derivada da exclamação: “Monarchiam tenemus. - Conservamos a monarquia” ( Tertuliano, Adversus Praxeam 3). Apresentava duas fórmulas:

O monarquianismo dinamista

O monarquianismo dinamista professou que Jesus era mero homem, o qual no momento do Batismo terá sido revestido de poder (dynamis) divino; foi, portanto, um homem adotado por Deus como Filho, com intensidade especial. O fundador desta corrente foi Teódoto de Bizâncio, cristão de notável cultura grega, que o Papa São Vítor excomungou (190). Os seus discípulos, Asclepiódoto e Teódoto o jovem, quiseram organizar uma comunidade própria, para qual nomearam um Bispo chamado Natal; este foi o primeiro antipapa, o qual, arrependido, tornou-se ao seio da Igreja. Tal corrente teve novo representante na pessoa de Paulo de Samosata, homem ambicioso. Este via em Jesus um mero homem no qual terá habitado “como num templo” o Logos ou a Sabedoria de Deus, que em escala menor habitava em Moisés e nos profetas. Um concílio regional reunido em Antioquia excomungou Paulo (268); mas os numerosos adeptos deste continuaram a professar a sua doutrina, de modo que o Concílio ecumênico de Nicéia teve que se ocupar com a escola dos paulanos (325).

É de notar que o mencionado Concílio de Antioquia em 268 rejeitou a afirmação de que o Filho ou Logos é da mesma substância ou natureza (homoousios) que o Pai. Ora precisamente esta expressão foi consagrada pelo Concílio de Nicéia I (325) como fórmula de fé. Para entender os fatos, devemos observar que Paulo de Samosata usava a palavra homoousios para significar que o Logos ou o Filho era uma só pessoa com o Pai.

Monarquianismo modalista

Esta corrente ensinava que o Filho era o próprio Pai ou uma modalidade pela qual o Pai se manifestava; por conseguinte, o Pai terá padecido na cruz (donde o nome patri, de pater, pai; passianismo, de passus, padecido).Tal doutrina, devida a Noeto de Esmirna, foi levada para Roma e Cartago (África), dando origem ao partido patripassiano, que muito agitou a comunidade de Roma. O Papa Zeferino (198-217), numa declaração oficial, afirmou a Divindade de Cristo e a unidade de essência em Deus, sem, porém, negar, como faziam os patripassianos, a diversidade de pessoas do Pai e do Filho. O modalismo foi estendido por Sabélio, em Roma, ao Espírito Santo. Este pregador professava três revelações de Deus: uma, como Pai, na criação e na legislação do Antigo Testamento; outra, como Filho, na Redenção; e a terceira, como Espírito Santo, na obra de santificação dos homens. Designava cada uma dessas manifestações como prósopon, palavra grega que significava originariamente “máscara ou papel de ator de teatro [14]“, visto que posteriormente prósopon significou também pessoa, a doutrina de Sabélio tornou-se ambígua e conquistou muitos adeptos, que de boa fé lhe aderiram sem querer negar a trindade de Pessoas em Deus. Como se vê, o grande problema consistia em afirmar a Trindade de Pessoas em Deus sem cair no triteísmo ou sem professar três deuses. A controvérsia havia de arder por todo o século IV, envolvendo todas as camadas da população, desde o Imperador até os mais simples fiéis; a ingerência do poder imperial, que desde 313 era simpático ao Cristianismo, contribuiu para tornar difíceis e penosas essas discussões teológicas; elas assumiam, não raro, um caráter direta ou indiretamente político. A problemática suscitou na Igreja os esforços de numerosos santos e doutores, que, com seus talentos intelectuais e sua vida, colaboraram decisivamente para a reta formulação da fé cristã. O período áureo da literatura cristã está precisamente ligado às disputas teológicas. Estudemos agora as controvérsias do século IV.

Arianismo e semiarianismo

Rejeitando o monarquianismo dinamista e modalista, a lgreja afirmava sua fé em Cristo, Pessoa Divina e distinta do Pai. Todavia não estava explicada a maneira como se relacionam entre si o Filho e o Pai. No século IV muitos admitiram a Divindade do Filho, subordinando-o, porém, ao Pai; donde resultou a tese do subordinacionismo, que teve em Ário de Alexandria o seu principal arauto.

ArianismoO presbítero Ário de Alexandria foi mais longe do que os pensadores anteriores: afirmava que o Filho é criatura do Pai, a primeira e a mais digna de todas, destinada a ser instrumentos para a criação de outros seres. Em virtude da sua perfeição, o Filho ou Logos poderia ser chamado “Filho de Deus”, como reza a tradição. O Bispo Alexandre de Alexandria reuniu um Sínodo local, contando cerca de cem Bispos, que condenaram a doutrina de Ário e dos seus seguidores em 318. A decisão foi comunicada a outros Bispos, inclusive ao Papa S. Silvestre. Ário, porém, conseguiu novos defensores para a sua causa - o que tornou mais árdua a controvérsia. Diante dos fatos, o imperador Constantino, que em 324 vencera Licínio, tornando-se Onico senhor do Império, resolveu intervir: tinha como assessor teológico o santo Bispo Ósio de Córdoba (Espanha), que Constantino enviou a Alexandria para aproximar Ário do Bispo Alexandre; a missão, porém, fracassou. Então Constantino resolveu convocar um Concílio ecumênico [15] para Nicéia na Ásia Menor em 325, ao qual compareceram cerca de 300 Bispos, provenientes de todas as partes do mundo cristão; o Papa Silvestre, de idade avançada, mandou dois presbíteros seus representantes. As discussões foram longas e agitadas. Por fim, os padres conciliares redigiram o Símbolo de Fé de Nicéia, que afirmava ser o Filho “Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, consubstancial (homoousios) ao Pai; por Ele foram feitas todas as coisas”. A palavra homoousios torna-se, de então por diante, a senha da reta doutrina. Significava que o Filho é da mesma natureza (= Divindade) que o Pai; não saiu do nada como as criaturas, mas desde toda a eternidade foi gerado sem dividir a natureza divina. O Imperador Constantino tomou aos seus cuidados a defesa do Concílio ecumênico de Nicéia. Exilou Ário e quatro Bispos que não queriam aceitar, na íntegra, definição do Concílio. Condenou às chamas os escritos de Ário; seria punido quem os guardasse às ocultas.

As divisões do Arianismo

lnfelizmente, porém, as controvérsias não terminaram. O termo homoousios parecia a alguns suspeito de sabelianismo ou de modalismo. Por isto alguns Bispos e monges puseram-se a combater o Concílio, apoiados pelos Imperadores Constâncio (337) e Valente (364-78), sucessores de Constantino. Do lado da ortodoxia, destacam-se: S. Atanásio, Bispo de Alexandria desde 328, que sofreu vários exílios; e o Papa Libério, que em 355 foi deportado pelo Imperador Constâncio; alguns historiadores antigos dizem que Libério conseguiu voltar à sua sede de Roma, subscrevendo uma fórmula de fé antinicena e deixando de apoiar S. Atanásio; se isto é verdade, deve-se à fraqueza humana, mas não se tratava de definição solene e sim de um pronunciamento pessoal que o Papa fazia. De resto, sabe-se que Libério, uma vez retornado a Roma, combateu eficazmente o arianismo. Os antinicenos, com o respaldo do Imperador, julgaram-se vencedores, depondo Bispos e reunindo Concílios regionais. Acontece, porém, que se dividiram: tendo negado a identidade de substância entre o Pai e o Filho ou afirmaram uns que o Filho era semelhante (homoiousios) ao Pai, enquanto outros o tinham como dissemelhante (anhomoios). A controvérsia era alimentada também pela sutileza do linguajar; palavras próximas umas das outras tinham significados diferentes: assim homoousios e homoiousios; genetós (feito) e gennetós (gerado), Nikainon (de Nikaia, sede do Concílio ortodoxo de 325) e Nikenon (de Nike, sede de um Concílio herético). Finalmente, após mais de cinqüenta anos de disputas ardentes, a ortodoxia foi prevalecendo, especialmente por obra dos três doutores da Capadócia (Ásia Menor): S. Basílio de Cesaréia († 379), S. Gregório de Naziano († 390) e S. Gregório de Nissa († 394). Estes elaboraram a fórmula grega: mía ousía kaí treis hypostáseis, uma essência (ou substância) e três pessoas, fórmula que exprimia fielmente o pensamento dos padres nicenos e o conteúdo da reta fé: há uma só Divindade, que se afirma três vezes ou em três Pessoas. O grande protetor da ortodoxia, no fim do século IV, foi o Imperador Teodósio (379-395), que, pouco depois de subir ao trono, convidou todos os habitantes do Império a aderir “aquela fé que professam Dâmaso em Roma e Atanásio em Alexandria”; mandou também entregar as igrejas de Constantinopla aos católicos. O Concílio Ecumênico de Constantinopla I (381) havia de consolidar a proclamação da reta fé contra o arianismo. Isto, porém, não quer dizer qual tal heresia se tenha extinto logo; várias tribos germânicas, entrando dentro das fronteiras do Império, foram evangelizadas por arianos, de modo que abraçaram o Cristianismo ariano sob forma de religião nacional. Resta agora estudar a discussão relativa ao Espírito Santo.

O Macedonianismo

O Espírito Santo, embora atestado por numerosos textos bíblicos (como Jo 14.16), foi menos considerado no decorrer do século IV. É certo, porém, que quem julgava ser o Filho criatura do Pai tinha o Espírito Santo na conta de criatura do Filho; seria um dos espíritos servidores (cf. Hb 1,14), diferente dos anjos apenas por gradação. S. Atanásio, ao combater o arianismo, defendia também a divindade e a consubstancialidade do Espírito Santo. Por isto, um sínodo de Alexandria em 362 reconheceu a Divindade do Espírito Santo. Isto, porém, não bastou para dissipar os erros: Macedôneo, Bispo ariano de Constantinopla deposto em 360, era ferrenho adversário da Divindade do Espírito, reunindo, em torno de si bom número de discípulos, que se chamavam macedonianos ou pneumatômacos (pneuma = espírito; máchomai = combater). Vários Sínodos rejeitaram a doutrina de Macedônio; o mesmo foi feito pelos padres capadócios. Mas o pronunciamento definitivo se deve ao Concílio de Constantinopla I realizado em 381: 150 padres ortodoxos, depois do afastamento de 36 macedonianos, condenaram o macedonianismo e, para explicitar claramente a fé ortodoxa, retomaram o artigo 32 do Símbolo de fé niceno, que rezava apenas: “Cremos no Espírito Santo”; foram-lhe acrescentadas as palavras: “Senhor e Fonte de Vida, que procede do Pai (cf. Jo 15,26), adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, e falou pelos Profetas”. Assim teve origem o Símbolo de fé niceno-constantinopolitano, que refuta tanto a heresia ariana quanto a macedônia. Restava, porém, dirimir ainda uma dúvida: se o Espírito procede do Pai, como se relaciona com o Filho? A resposta foi diversa no Oriente e no Ocidente; todavia a diversidade consiste mais na formulação do que na própria doutrina. Os gregos, desde o século IV afirmam que o Espírito procede do Pai através do Filho, ao passo que os latinos ensinam que procede do Pai e do Filho (Filioque). Na Espanha o Filioque foi inserido no Credo niceno-constantinopolitano em 589 e oficialmente recitado, passando depois para outras regiões de língua latina. Os gregos se recusam a aceitar tal inserção, que se tornou pomo de discórdias nos séculos IX-XI. Atualmente as dificuldades vão sendo superadas, pois em última instância se trata mais de palavras do que de conteúdo.

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